O resgate do conceito da casa como centro dos cuidados em saúde

Articular a assistência extra-hospitalar é o caminho para usar recursos de forma mais racional e garantir a continuidade do atendimento

Em 2016, Eduardo Giacomazzi, diretor adjunto do Comitê de Saúde da Comsaude/Fiesp, viajou para a Holanda e voltou inspirado pelo modelo buurtzorg, de cuidado extra-hospitalar em comunidade, como forma de trazer inovação e melhorar o uso dos recursos em saúde no Brasil. Quando a pandemia se alastrou pelo País, o conhecimento adquirido foi posto em prática em sua própria família. As visitas à mãe, Nilce, de 84 anos, ficaram restritas, como forma de protegê-la do contágio. A saída para continuar monitorando sua saúde foi contratar um serviço de assistência domiciliar. “Ela vive sozinha e é diabética e eu não estava mais conseguindo visitá-la tanto. Então, por uma questão de saúde, mas não de emergência, eu decidi testar esse modelo de assistência”, relembra.   

Agora, com hospitais sobrecarregados, o executivo, que também é diretor da empresa de saúde brasileira-holandesa Valorange, acompanha a volta de um modelo de assistência continuada e coordenada, com o fortalecimento da relação do indivíduo com seu principal provedor de cuidados.

“Estamos retomando uma relação de antigamente. Tenho 52 anos e lembro que existia o médico da família, que nos visitava em casa. Era tão óbvio isso. A pandemia jogou a gente de volta para esse lugar.”

Mais do que isso, as famílias precisaram assumir seus lugares nos cuidados com os idosos ou pacientes que, apesar de vencerem a Covid-19, ainda precisam tratar as sequelas, geralmente em casa, para liberar leitos para os casos mais críticos. “É um nível de preocupação que nós nunca tínhamos vivido antes. Esse apoio em casa passa a ser fundamental para a família e o hospital acaba ficando um pouco fora desse ciclo”, pondera.

Como a assistência extra-hospitalar apoia o sistema de saúde

À frente do MBA Gestão em Modelos de Assistência Extra-Hospitalar do Centro Universitário São Camilo, Marlene Uehara Moritsugu reflete sobre seus mais de 20 anos de enfermagem em UTIs, pronto-socorros, ambulatórios médicos de especialidade e home care e o legado que será deixado pela pandemia. 

Se convivemos com muitas perdas no período de 2020/2021, também tivemos aprendizados, como identificar melhor os casos que de fato precisam de atenção hospitalar.  Neste cenário de falta de leitos e materiais, profissionais exaustos e pacientes e familiares lutando para conseguir atendimento,  teríamos um pouco de alívio com uma articulação melhor da rede assistencial. “A assistência extra-hospitalar daria apoio para toda a rede, especialmente com a mudança do perfil epidemiológico e o aumento das doenças crônico-degenerativas. O paciente com Covid-19, quando sai do hospital, às vezes precisa de um respaldo maior, com equipe multidisciplinar, e o home care pode atender essa alta complexidade”, analisa Marlene.

Da oxigenoterapia e internação à terapia medicamentosa e orientações pós-alta, passando pelo planejamento da estrutura residencial para receber o paciente, o cuidado domiciliar pode ser estabelecido em diversos níveis, englobando assistência social, fisioterapia, dentistas e médicos de apoio.

“A tendência é ampliar os horizontes para coordenarmos melhor os recursos de saúde”, aponta Marlene.

Marlene Uehara Moritsugu, do Centro Universitário São Camilo: 60% dos pacientes internados em clínica médica estão tratando doenças crônicas, com custos que chegam ao dobro da internação domiciliar

Com equipes multidisciplinares, equipamentos e recursos como teleconsulta e monitoramento à distância, as casas, nas palavras de Marlene, se tornam ” mini-hospitais satélites”, garantindo o acompanhamento de quem não consegue acesso ao hospital agora, mas precisa preservar a qualidade de vida e não agravar seu estado clínico.  

Em casa, assistida e seguindo as recomendações de isolamento social, enquanto desenvolve uma amizade entre um almoço e outro com a enfermeira que monitora seu quadro clínico, Nilce é, na opinião de seu filho, um exemplo de como funcionarão os sistemas de saúde no futuro. “Na Holanda, o modelo buurtzorg prega o “care”, em vez de “cure” e é isso que precisamos: priorizar o cuidado de saúde, em vez da doença.”   

Com base em sua experiência prática e estudos desenvolvidos no meio acadêmico,  Marlene estima que, hoje, 60% dos pacientes internados em clínica médica estão tratando doenças crônicas, com custos que chegam ao dobro da internação domiciliar. “Além disso, o home care não só promove a desospitalização, mas evita a alta demanda no pronto-atendimento e, por consequência, alivia os leitos de clínica médica e UTI. É um efeito cascata, que ajuda a organizar o atendimento hospitalar para quem realmente necessita.” 

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Para os pacientes, como Nilce, soma-se a isso o conforto de ser mantido em sua própria casa, dentro do contexto familiar e de sua rede social de contato. “No hospital, quem é de fora é a família. As regras são impostas de acordo com as normas de lá. Na assistência extra-hospitalar, o importante é o paciente e nós é que precisamos adequar a equipe e o trabalho de oferta da assistência à necessidade do paciente e exigências da família”, relembra a especialista.

Atendidos pela Laços Saúde no modelo buurtzorg, que prega o cuidado dentro da comunidade e o atendimento do paciente como um todo, dentro de seu contexto, Nilce e Eduardo se adaptaram à assistência domiciliar e ao fluxo de trabalho diferente do hospital. “A gente cria um vínculo muito legal. Não tem pressa, tem o tempo que precisa, com orientações práticas para melhorar a qualidade de vida dela”, conclui Eduardo.